Caos

Não é fácil libertarmo-nos das teias que a vida tece. São necessários sacrifícios e as desilusões espreitam. As tarefas quotidianas sorvem muita energia e não deixam tempo para a reflexão. O aturdimento acompanha‑as.

Na ausência de leituras sãs, a mente fica repleta de banalidades e de ideias deturpadas, que se expandem como erva daninha. As tensões acumuladas irrompem, muitas vezes com graves consequências. A ambição domina e impede o aperfeiçoamento interior.

Há canais televisivos que, lançados numa competição desenfreada, insistem em transmitir programas violentos e grosseiros, sem respeito pelas crianças, que vão sendo contaminadas perante a passividade dos pais. A rectidão dá lugar à mentira, a cultura da morte banaliza-se e a interioridade é substituída por uma exteriorização vazia de conteúdo.

Os pais não têm tempo para os filhos. Muitos andam à deriva e caem na marginalidade devido ao alheamento dos adultos e à indiferença destes perante a dimensão ética da vida. O materialismo impera e os programas escolares disso se ressentem. A informação é prioritária e a formação moral esquecida, deixando os jovens sem defesas perante as contradições de uma sociedade onde quem tem a função de governar governa mal, onde o que é fútil recebe lugar de destaque e aqueles que têm menos recursos são os mais prejudicados. Acredita-se em quantos, para obterem votos, fazem promessas de benefícios futuros que muitas vezes não cumprem e são incapazes de reconhecer que erram. A rectidão verga-se aos interesses políticos e económicos.

Não há soluções fáceis para uma sociedade que perdeu o norte. De pouco adiantam medidas de carácter prático quando não se identifica as verdadeiras causas e se persevera no erro. É necessário menos activismo e mais interioridade, uma atitude humilde e discreta em lugar da ostentação tornada tão comum, um sentido de disciplina capaz de sobrepor-se à permissividade reinante. As deficiências na educação das crianças e adolescentes devem ser supridas por uma maior receptividade dos pais ao diálogo e pelo incitamento à leitura que, por sua vez, favorece a reflexão.

A ausência de princípios éticos deixa as pessoas desorientadas face ao materialismo que invade todos os domínios, alimentando o egoísmo, a ambição, a vaidade. Ignora-se tudo a respeito dos aspectos fundamentais da existência, do sentido da vida e da morte, do espírito de infância que precisa de nascer no meio do deserto criado pelos homens. Não existe uma atitude introspectiva capaz de permitir que estes se apercebam dos erros cometidos, nem a necessária vontade de mudar. Cuida-se apenas da aparência e descura-se o que é autêntico. O banal expande-se desmedidamente, mas levantam-se obstáculos à expressão da verdadeira sensibilidade, que muitas vezes se torna objecto de troça ou é ocultada para não provocar estranheza. A busca do prazer, o comodismo, a atracção pela novidade, impedem o sentido da reflexão e fazem perder o norte. Sub-repticiamente, a insatisfação instala-se e, com ela, a agressividade.

O libertar do instinto sexual é característico da sociedade de hoje, sendo explorado até à exaustão. Se algum comedimento existe, deve-se ao medo das doenças sexualmente transmissíveis. De resto, nenhum pudor. Os programas televisivos contribuem para agravar a situação. A pretexto de derrubarem interditos, exibem em praça pública o que deveria merecer delicadeza e respeito, incitando os adolescentes a antecipar experiências para as quais não estão preparados. Multiplicam-se os excessos face à permissividade geral. Não existe subtileza nem existe ternura; tudo é mecânico e precipitado. A falta de ponderação traz, muitas vezes, consequências sérias, como a doença, a gravidez indesejada, o aborto. A forma como a televisão evidencia a sexualidade apenas serve para rebaixá-la, fazendo desta um chamariz de audiências. Explora os instintos primários unicamente com intuitos lucrativos. Retira tempo à leitura e a uma actividade física sã, em contacto com a natureza. Incute sonhos de sucesso fácil, devassa privacidades para atrair o grande público, alimenta falsas polémicas.

A sociedade rege-se por leis económicas em que o mais forte impera. Os pequenos são prejudicados por muitos que parasitam em lugares cimeiros na maior impunidade. É difícil alterar-se um sistema injusto em que a hipocrisia oculta intenções bem menos nobres do que as apregoadas e a mira do lucro a tudo se sobrepõe. Os sectores fundamentais da sociedade não têm o apoio de que necessitam, mas vê-se projectos fúteis receberem incentivos. A autoridade é sistematicamente contestada e a desordem instala-se. As instituições educativas sofrem os efeitos do excesso de condescendência, o aproveitamento escolar é muito baixo e as sucessivas reformas apenas têm servido para criar instabilidade.

De que adianta contestar-se uma decisão ou outra se são os alicerces da sociedade que estão minados? Quando aos princípios éticos se sobrepõe o economicismo, quando os jogos de poder se tornam mais importantes do que a rectidão e não há escrúpulo em cumprir a palavra dada, não pode haver ordem social e a corrupção continuará a crescer. Leva-se a cabo obras desnecessárias, enquanto muitos pobres vivem em condições degradantes, sem merecerem, de uma forma significativa, a atenção dos responsáveis. São mais importantes as intrigas políticas e as mesquinharias partidárias, as iniciativas demagógicas e os diferentes modos de contornar a lei para disso se retirar benefícios.

A inversão de valores generaliza-se, perante o alheamento de muitos. O que é delicado tem vindo a dar lugar ao distorcido e monstruoso. Comprova-o um grande número de brinquedos, livros e filmes destinados a crianças e adolescentes. O mórbido atrai. A música tornou-se dissonante e agressiva. O silêncio deixou de ser apreciado e o tédio apodera-se facilmente das pessoas, que vivem em busca de sensações cada vez mais fortes. A ausência de interioridade leva a uma valorização excessiva dos bens materiais e ao desejo de adquirir como forma de alcançar estatuto. A insatisfação que tal desejo acarreta faz muitas vezes perder o sentido dos limites. As instituições bancárias exploram essa insatisfação, promovendo o endividamento. As banalidades do futebol têm lugar de destaque nos meios de comunicação social, enquanto assuntos sérios são tratados num relance. O sector da saúde luta com dificuldades financeiras, mas a construção de estádios foi considerada mais importante.

Existe pouca consciência da expansão do mal na sociedade. Este tem vindo a tomar formas novas e cada vez mais mortíferas. A contaminação do ambiente vai ditando o fim das espécies, porque os interesses económicos falam mais alto. O homem continua a ser o lobo do homem, agora como dantes. De pouco valem cimeiras e tratados, face à hipocrisia e à irresponsabilidade humanas. O egoísmo é o padrão de comportamento dominante, com prejuízo de multidões de desfavorecidos, sujeitas à lei do mais forte. Ideologias várias prometeram paraísos na terra, mas não têm passado de inconsistências. Quiseram arvorar-se em modelos perfeitos de sociedade; continham, porém, em si, os germes da sua própria destruição. Fomentaram perseguições, espalharam a morte, criaram miséria. A glória de alguns foi edificada sobre a desgraça de inúmeros, cegos guiados por cegos que presumiram de sábios e atraiçoaram as expectativas dos que neles depositavam confiança.

O sofrimento persiste, apesar do tempo de vida ter aumentado. O progresso da medicina não evitou o aparecimento de novas doenças e nem sempre se tem encontrado soluções satisfatórias para muitas já existentes. As tecnologias da comunicação desenvolveram-se de maneira considerável, mas a relação entre as pessoas não melhorou por isso. Oscila-se entre a esperança e o cepticismo quanto ao futuro, mas não haverá mudanças de facto se o homem não se tornar consciente das forças negativas que agem dentro de si. De contrário, continuará a ser presa fácil dos seus próprios instintos, da cobiça e do orgulho, da mentalidade competitiva, que não olha a meios, da intolerância, da mesquinhez, da prática da violência. Os vícios difundem-se, aumenta o número de crimes, as famílias desintegram-se. As crianças recebem dos adultos exemplos negativos e enveredam por caminhos vazios de sentido, que nem a escola nem a universidade conseguem preencher. Mas não se quer aceitar o que é evidente. Prefere-se a ilusão dos lugares-comuns, enroupados na erudição de pretensos especialistas, orgulhosos do seu saber, tantas vezes fictício. Aparentam certezas que não possuem e confundem o secundário com o que é essencial. Convencidos de estarem na posse da verdade, tendem a rejeitar tudo o que não se enquadre na sua forma de pensar. Não é porém o intelectualismo que poderá resolver os graves problemas da delinquência, do desenfreamento dos instintos e do desrespeito pela vida, mas sim a rectidão de carácter, a delicadeza de sentimentos, a lucidez que nasce da capacidade de introspecção.

Dedica-se muito tempo ao que é irrelevante, num frenesim de iniciativas; anda-se em círculo, até que a sensação de vazio se apodera das pessoas, sem estas se aperceberem das verdadeiras causas. Fogem de si próprias, aturdindo-se com as solicitações do momento, e o vazio cresce. Tentam sufocar a ansiedade à custa de comprimidos, procuram nas viagens exteriores aquilo que só podem encontrar no interior de si. Os desportos radicais, a febre da velocidade, são, para muitos jovens, uma forma de iludir o tédio que lhes inspira uma sociedade apenas preocupada com os valores da aparência. Mal orientados, atraídos pelo que é efémero e a braços com as suas contradições íntimas, muitos não conseguem ultrapassar os obstáculos que a vida lhes apresenta e caem no cepticismo e na revolta. Deixam-se seduzir por ídolos de pés de barro, pela miragem das drogas, pelo aturdimento da vida nocturna. Transgridem por transgredir, destroem pelo prazer da destruição. São um fracasso na escola, mas aprendem rapidamente as lições do crime. A permissividade dos responsáveis levou a que a situação se tivesse agravado a olhos vistos.

A competição desenfreada não oferece alternativas. A lei do mais forte a tudo se sobrepõe. Incita-se ao consumo e ao endividamento, desprezando-se as consequências. Grandes empresas sobre-exploram os mais carenciados e nem as crianças são poupadas a estas (e a outras) práticas indignas.

O espectro do desemprego tem assombrado a realidade nacional. Desenvolveu-se de uma forma sub-reptícia, perante o alheamento dos governantes. Os oportunistas vão sugando o sangue dos que trabalham honestamente; muitos são considerados pessoas respeitáveis, a menos que algum escândalo rebente e deixe vir à tona a podridão. O dinheiro é todo-poderoso e justifica quaisquer baixezas. De nada adiantam manifestações de rua se se continuar a não respeitar os mais elementares princípios éticos. O rigor na aplicação das leis varia consoante o estrato social. Os mais ricos sabem como contorná-las e como pô-las ao serviço dos seus interesses. A impunidade é frequente apesar das graves negligências e dos actos de corrupção. Mente-se despudoramente, lança-se as culpas sobre o próximo e não falta astúcia para confundir os incautos.

Não se pode deixar de mencionar os atentados ao ambiente e o descaramento com que são cometidos. O dinheiro lava tudo e até se lava a si próprio. É portanto normal que as situações se repitam indefinidamente e tudo permaneça como está.

Aturdida pelo dia-a-dia, muita gente não dá conta das graves injustiças sociais: limita-se às tarefas quotidianas, às nulidades do futebol, evita aprofundar assuntos sérios, pensa como os demais pensam e diz o que os demais dizem. O assédio da publicidade aos mais novos faz deles pessoas egoístas e insatisfeitas. Por falta de referências sólidas, malgastam a sua energia em práticas lamentáveis, sendo mais lamentável ainda a total demissão de muitos adultos face ao descalabro da vida de tantos jovens.

As sessões parlamentares quase se reduzem a trocas de acusações e de ofensas, actividade por sinal bem remunerada. Pior estão aqueles que ganharam o pão com o suor do rosto e recebem hoje pensões de miséria. Mas a vergonha é uma ave rara e o que conta são os dividendos políticos. Vozes soltas dão testemunho de isenção e apelam à dignidade; denunciam injustiças e respeitam a verdade dos factos. Bem outras são as vozes da arrogância e da mediocridade, da parcialidade e da astúcia, da má-fé e das falsas promessas. O discurso é fluente, mas não há transparência. Surpreende pelo à-vontade mas segue caminhos errados e apenas transmite lugares-comuns. É ditado pela ambição, exibindo uma segurança enganadora. Seria preferível mais silêncio e menos vaidade, mais cooperação e menos conflito. Luta-se sem tréguas pelos lugares de chefia, mas a maturidade de quem os ocupa deixa, por vezes, muito a desejar. A inconsistência vai de par com a demagogia. Repete-se os velhos chavões, grita-se palavras de ordem, fala-se, fala-se, fala-se. Entretanto, as dificuldades do país avolumam-se. Quando se começará a ver claro? O passado autoritário, feito de perseguições políticas, não poderá renovar-se num presente em que o laxismo tem levado às mais graves consequências, abrindo caminho à perversão, à violência, à libertinagem. A indiferença em relação aos princípios éticos está a desagregar uma sociedade cada vez mais árida e materialista, que se afastou do Espírito para seguir outras leis, e que acabará por se devorar a si própria.

Reflectindo…

A agitação do dia-a-dia é um obstáculo à reflexão e conduz à mecanicidade. A ausência de dimensão espiritual faz da vida um terreno estéril, onde as pessoas vagueiam perdidas. Adquirem bens materiais, procuram afirmar-se profissionalmente e, enquanto uns fazem tudo para manter a boa forma física, outros vão arruinando a saúde para alimentar vícios.

A desagregação das famílias em nada é favorável ao crescimento interior das crianças, que se tornam revoltadas e cépticas. Extravasam a agressividade de muitas maneiras, desde a zombaria ao insulto e à violência física. Cedo ficam a conhecer o lado torpe do mundo dos adultos. O espírito de transgressão arrasta-as para o mal, de onde um grande número não conseguirá sair, devido à inépcia de uma sociedade que não as protege e ainda contribui para as desencaminhar. Multiplicam-se as seduções, face à permissividade reinante e a um pretenso amoralismo que apenas serve para encobrir a falta de norte… Chagas sociais que os discursos dos políticos ignoram, a menos que o facto de as denunciarem lhes traga algum proveito. A publicidade anuncia um mundo de coisas fictícias que faz passar por necessárias, alimentando vaidades, ambições, comportamentos fúteis, rivalidades. Não importam os meios, desde que se atinjam os fins pretendidos. A influência da imagem é poderosa e apela frequentemente aos instintos primários.

A liberdade sem responsabilidade, própria dos tempos de hoje, tornou-se causa de morte de tantos jovens que ninguém ajudou a crescer na ternura, na esperança, no sentido da auto-observação, que é porta aberta para a sensibilidade e para a lucidez. O vazio de referências éticas cria pessoas inconsistentes e de vontade frouxa, incapazes de qualquer sacrifício. Não tendo aprendido a disciplinar os instintos, e sem discernimento para reconhecer o perigo, caem na degradação, arrastando muitos na sua queda. Outras crescem imbuídas de ideias de sucesso a qualquer preço. Exibirem-se no pequeno ecrã parece-lhes um meio de o conseguirem. Que importa que se dê exemplos de mediocridade e de grosseria, se com isso se alcançar fama e dinheiro? Não se hesita em inundar a mente dos mais novos de cenas de violência, que são absorvidas sem qualquer sentido crítico. As fantasias próprias da idade cedo são afastadas, para darem lugar ao desejo de domínio sobre os outros, a um forte sentido de competição, a atitudes agressivas, ao desdém em relação aos mais velhos, de quem se encontram separados por uma barreira de frieza a que não é alheia a ausência de diálogo. Orgulhosos por transgredirem as leis da sociedade, acabam por sofrer no corpo e na mente as consequências de tais transgressões. A autoridade e a ternura devem conjugar-se na educação dos jovens, para que estes não cresçam desenraizados. Muitos têm pais, mas é como se não os tivessem. O vazio afectivo é enorme, matando à nascença a capacidade de sonhar. A revolta cresce e leva a comportamentos irracionais. Em vez de ternura, violência; em vez de delicadeza, brutalidade. Pais demasiado ausentes, ou dando aos filhos exemplos de grosseria. E a situação não revela tendência para melhorar. A mentalidade divorcista tem-se acentuado, a par da banalização do adultério. Divididas entre famílias, sem saberem qual o seu lugar, as crianças vão vivendo ao sabor da imaturidade emocional dos pais, a meio caminho entre os conflitos de ambos, que as usam com frequência como forma de mutuamente se agredirem. Num ambiente em que o desrespeito impera, não se pode esperar obediência por parte dos mais novos. Se a dignidade e a rectidão se ausentam, a desordem instala-se facilmente. A chantagem e a astúcia, bem como a mentira, a maledicência e o rancor disputam entre si o domínio das situações cada vez mais difíceis com as quais as famílias se confrontam. O egoísmo só ouve a sua própria voz: define prioridades erradas e desrespeita compromissos sérios.

Semeia ventos. Colherá tempestades.

Então eu seria uma criança feliz


Se à segunda-feira se pudesse correr livremente pelos prados
e as flores desabrochassem numa explosão de cor…

Se à terça-feira se contemplasse o céu
no seu mistério de um azul sem fim…

Se à quarta-feira se retirassem as máscaras
e a verdade brotasse…

Se à quinta-feira a alegria entrasse nos corações…

Se à sexta-feira todos se dessem as mãos…

Se ao sábado os pais contassem aos filhos histórias de encantar…

Se ao domingo a beleza do silêncio se renovasse em cada ser…

Então eu seria uma criança feliz,
e a minha canção voaria por sobre as casas,
dançaria entre os ramos das árvores,
e à hora do crepúsculo repousaria sobre os mares do mundo,
tornada canção de embalar,
a encher de paz e de ternura os sonhos das crianças.

Anónimo


Impressão

Obrigado


Obrigado, Mãe, por me teres ensinado a buscar a Verdade, quando tudo à minha volta me convidava a dissimulá-la.

Obrigado, Mãe, por me teres ensinado que os triunfos e as derrotas fazem parte da vida e que os obstáculos são fonte de crescimento.

Obrigado, Mãe, porque me preparaste para ser autónomo num mundo em que o apelo dos sentidos é cada vez mais forte.

Obrigado pela tua ternura e pela abnegação com que me dedicaste a tua vida, desde que comecei a existir dentro de ti.

Obrigado, Mãe, por teres povoado de sonhos a minha infância e por me teres deixado ser criança.

Obrigado, Mãe, por teres estado atenta aos perigos que me rodeavam, mesmo os que se escondiam sob roupagens inocentes.

Obrigado por teres compreendido que há um tempo para brincar e um tempo para ser responsável.

Obrigado pela esperança que soubeste transmitir-me e pelo respeito com que me ensinaste a olhar os outros.

Obrigado por teres aberto os meus olhos para a beleza das árvores, dos rios e das montanhas, e por me teres dito que aqueles que matam a natureza se matam a si próprios.

Obrigado, Mãe, porque nunca te impacientaste com as minhas perguntas de criança inquieta face ao mistério das coisas.

Obrigado por teres sabido ser firme perante as minhas teimosias e por me teres mostrado que autoridade e ternura não se negam mutuamente.

Obrigado, porque contigo aprendi a não me vergar diante dos respeitos humanos, nem a seguir as opiniões da maioria, apenas por ser maioria.

Obrigado por me teres ensinado a ser sóbrio numa sociedade em que a moda e a aparência falam demasiado alto.

Obrigado, porque me deste as horas da tua vida para que eu crescesse feliz.

Agora que sou adulto, lembro, Mãe, o tempo em que me falavas sobre o ter e o ser, e me dizias da distância que os separa. Aprendi contigo o valor da partilha e a recusa de tudo o que leva à perda da dignidade.

Ajudaste-me a crescer e respeitaste as minhas escolhas. Criaste em torno de mim um ambiente de harmonia e de ternura, mas também me abriste ao mundo e aos seus confrontos. Falaste-me do bem e do mal, da vaidade e da modéstia, da miragem das paixões e suas consequências. Fizeste-me sonhar com as tuas histórias, onde entravam príncipes e princesas, castelos misteriosos, florestas encantadas, fadas e feiticeiras. Ao ouvir-te, sentia-me mais forte perante os obstáculos, mais pronto para enfrentar a vida, mais seguro de mim. Contava-te os episódios da escola, que hoje recordo com saudade. Fui crescendo e vivi novas experiências. Senti o gosto da liberdade, despertei para outras sensações, questionei o meu universo de valores. Segui modas. Mas não perdi o gosto pelos livros, que tão bem soubeste incutir-me. E aos divertimentos vãos comecei a preferir a reflexão; ao ruído exterior, o silêncio que dignifica; às experiências passageiras que só deixam amargura, o diálogo que ajuda a crescer. Procuro, hoje, seguir o teu exemplo de responsabilidade e de diligência, de respeito pelos outros e de frontalidade. Sempre tiveste o dom de extrair dos momentos difíceis o melhor para a minha consciência. Mostraste-me que a liberdade só é um bem precioso quando assenta no respeito pela liberdade dos outros, e que a intolerância para com os que são diferentes é caminho certo para a desgraça. Por tudo isso, cresci na convicção de que não se deve cruzar os braços diante de um mundo dilacerado pela violência, e de que há formas de solucionar os graves problemas com que ele se debate. Mas nada será possível se não houver generosidade bastante.

A tua coerência, Mãe, traçou o meu próprio caminho e desviou-me do beco sem saída da mentira e da hipocrisia. Quantas vezes conversámos sobre a vida à nossa volta! Ensinaste-me a ser firme nas minhas convicções, sem por isso deixar de respeitar as convicções alheias, e a procurar adoptar sempre a atitude mais recta. Ensinaste-me também que a ternura é de longe mais importante na relação de um casal do que a satisfação dos instintos, que quase sempre, apenas conduz ao vazio. Dirigiste-me palavras esclarecidas sobre o mundo dos sentidos e disseste-me que autodomínio e repressão não são a mesma coisa. Ajudaste-me a conhecer melhor o meu corpo e a não me deixar subjugar pela força dos instintos, nem a buscar os paraísos artificiais da droga. Mas fizeste-me, acima de tudo, compreender que é preciso saber ouvir a voz da consciência, a única capaz de nos ajudar a separar o trigo do joio. Só ela tem a capacidade de devolver a esperança àqueles que a perderam, e de chamar à acção aqueles que baixaram os braços.

Sou um jovem do meu tempo, mas não pretendo, por isso, abdicar dos valores fundamentais do carácter: a rectidão e o sentido de responsabilidade, a tolerância, a honestidade, a compaixão. Quero estar informado, e não tenciono permitir que outros pensem por mim. Acredito na dignidade do ser humano, face a todas as formas de rebaixamento que os meios de comunicação social têm vindo a promover. Farei o que estiver ao meu alcance para contrariar a força de uma sociedade materialista em que os valores da aparência são mais poderosos que a defesa da vida no ventre materno, em que a liberdade se confunde com libertinagem, em que os jovens andam à deriva porque os governantes preferem investir em estádios de futebol, em que a ambição fala mais alto do que a honestidade. Farei o que estiver ao meu alcance para apoiar esses mesmos jovens, feridos da mais profunda das ignorâncias: a de que as suas vidas têm dignidade, apesar da negligência de muitos pais, que não se preocupam com a formação do carácter dos filhos, apesar de uma sociedade que explora as suas fragilidades com o fito do lucro, apesar de um futuro comprometido pela falta de perspectivas de emprego.

Termino, Mãe, agradecendo-te a oportunidade que me deste de vir a este mundo e de poder crescer na tua protecção. Dirijo-te estas palavras, que dirijo também a todas as Mães que tiveram a coragem e a generosidade de deixar a vida crescer dentro de si, e de dar aos seus filhos o apoio necessário para que estes pudessem amadurecer no sentido da rectidão e na esperança.

Anónimo

Vida e Morte




A flor não cresce
sem o manto do sol.

A ave não canta
sem o toque de luz.

A alma não vive
sem a força da fé.



A flor desabrocha
num riso de infância.

A ave esvoaça
no carinho do vento.

A alma dilata-se
nos dons do Amor.



A flor agoniza
na candura perdida.

A ave entristece
na miragem do ter.

A alma despede-se
na vertigem do ódio.


Anónimo


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